terça-feira, fevereiro 26, 2008 | Autor: Ebenézer Teles Borges
Desejo é um sentimento tipicamente humano. Nele nos irmanamos quando sonhamos com um mundo melhor, uma sociedade mais justa e uma vida mais plena de sentido. Desejar é querer o que não temos, é almejar o que nos falta, é ambicionar, ansiar, sofrer e até chorar por algo a que atribuímos grande valor e do qual não temos a posse. Este é o lado triste do desejo: nunca se deseja aquilo que já se tem. O desejo sempre nos fala de uma ausência. Vou exemplificar:

A saudade está sempre presente quando alguém a quem amamos se faz ausente. Saudade é desejo: desejo de rever, de tocar, de abraçar, de sentir-se perto de quem se fez distante no tempo ou no espaço. Saudade é a percepção de uma ausência e desejo de rever, de reencontrar.

Fome não é apenas vontade de comer. Há muitos que comem sem fome, pelo prazer de comer ou por pura gula. Fome é algo mais profundo: é desejo. Desejo do corpo desfalecido pelo alimento de que se sente privado, é a voz desesperada do organismo, clamando em roncos pela comida ausente, pelo nutriente que lhe falta. Fome é a consciência dessa ausência e o desejo de ser alimentado.

Religião... Há tantos que se dizem religiosos e rezam e oram e fazem promessas e freqüentam igrejas. Seria isso religião? Penso que não. Religião me parece ser algo muito mais subjetivo e enigmático. É a mais profunda expressão de desejo da alma, a busca mais intensa e apaixonada por algo que nos é maior, mais forte e capaz de dar, à vida, o sentido e a certeza que a ela faltam. Religião é o suspiro veemente e inefável que brota do coração humano oprimido e desamparado, que busca por consolo e conforto, abrigo e segurança, tão ausentes nessa vida que se enche de compromissos e se esvazia de significância. Religião é, acima de tudo, desejo. Desejo de dar sentido à vida, ao mundo que nos cerca, ao universo que nos envolve.

E poderíamos ir aqui multiplicando os exemplos de desejos, desse sentimento tão comum a mim e a você, hóspede eterno de corações pueris e idosos, sentimento tão nosso, tão íntimo... É que somos seres do desejo e, provavelmente, frutos dos desejos de nossos pais... Mas não pretendo me alongar. Vou apenas convidá-lo a considerar comigo a palavra "desejo". De onde ela vem? Qual é a sua origem? Para responder a essas perguntas terei que me valer mais uma vez da etimologia (adoro etimologia).

Alguns dicionários apresentam duas possíveis origens. Na primeira, "desejo" deriva do latim desedium (estar sentado), de onde vem a nossa palavra "desídia", que significa "indolência, ociosidade, preguiça". Na segunda, "desejo" procede do verbo latim desiderare, de onde vem a nossa palavra "desiderato", que quer dizer "desejo, aspiração". Particularmente, aprecio mais esta última proposição e vou tomá-la, aqui, como a mais apropriada.

Desiderare (de+siderare) nos reporta a outra palavra latina, siderare (relativo a astros ou estrelas). Na antiga Roma, os adivinhos "consideravam" (con+siderare), isto é, observavam atentamente as estrelas, para extraírem delas alguma conclusão quanto ao futuro. Muitos colocavam sua fé nesses prognósticos baseados em estrelas (sidus) e esperavam ansiosamente pelo seu cumprimento. Com o passar do tempo e em não se confirmando a predição, o crente frustrado abria mão da esperança e "desistia das estrelas". Desiderare é exatamente isso: "desistir das estrelas", dos astros, da esperança e ficar com uma triste certeza: a certeza da ausência de resposta...

A palavra "desejo" carrega em si essa associação negativa. É a consciência de uma ausência forte, de um vazio enorme, de uma fome voraz, de uma saudade sem fim, de uma esperança que ainda não se realizou. Por outro lado, há algo de positivo e mágico nessa palavra que a faz encantadora e bela, que a torna especial para todos nós. É que o "desejo" sempre foi e sempre será a grande fonte de inspiração para todas as formas de arte; o grande agente propulsor das conquistas e realizações humanas; a força indomável que nos move e nos faz sonhar com utopias, como a de um mundo ideal, justo e fraterno para todos.

Posso facilmente "desistir das estrelas" (desiderare), mas não do desejo. E você?


Referências:

Desejo – Dicionário Houaiss -
http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=desejo&stype=k
Desejo – Dicionário Michaellis -
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=desejo
Palavras que deveriam existir -
http://www.interney.net/blogs/inagaki/2007/04/14/palavras_que_deveriam_existir/
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3 comentários:

On 27 de fevereiro de 2008 às 09:30 , Anônimo disse...

Desejo sarar de meu joelho,
que me impede de correr,
e traz para a minha vida,
a ausência de corrida.

 
On 27 de fevereiro de 2008 às 15:30 , Enéias Teles Borges disse...

Bom texto. Pensei bastante na expressão "a palavra "desejo" carrega em si essa associação negativa".

"A consciência de uma ausência forte..." Não há como fugir disso neste nosso mundo.

 
On 29 de fevereiro de 2008 às 21:51 , Anônimo disse...

Tem certeza que você está trabalhando no ramo certo?

:P

Abraço!

 
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